Tóquio – 20/06/2020
Há muitos anos fala-se em teletrabalho, em flexibilidade de horários e várias outras ações que beneficiariam todos, a pessoa, a empresa, o meio ambiente, a saúde pública, a mobilidade urbana, a cidade e por aí vai. Essa coisa, entretanto, nunca pegou. A pandemia parece ter, finalmente, colocado em movimento esse (velho) novo modo de pensar na estrutura do trabalho coletivo.
No Japão, teletrabalho sempre foi um tabu, já que, na mente dos trabalhadores, pegar trem lotado, culturalmente, faz parte do trabalho. Não fazer esse percurso casa-trabalho pode parecer diminuir a importância de seu ganha pão ou do quanto se esforça pela empresa.
Pensou-se na adoção do teletrabalho como uma das medidas para viabilizar o deslocamento dos visitantes em Tóquio durante as Olimpíadas 2020 (atualmente adiadas para 2021 e correndo um grande risco de serem canceladas).
A ideia era promover o teletrabalho entre as grandes empresas localizadas nas áreas onde os eventos olímpicos ocorreriam, reduzindo a demanda por transporte coletivo e liberando capacidade para os visitantes. Fui criada uma campanha “Smooth Business” para incentivar as empresas a aderirem ao teletrabalho, flexibilização de horários e outras medidas de gestão da demanda por mobilidade. Havia uma expectativa de quase um milhão de visitantes por dia em Tóquio para as Olimpíadas 2020. Não havia plano de expandir a infraestrutura de transporte coletivo especificamente para os jogos.
Eventos preparatórios foram realizados anualmente, quando em um dia específico, as empresas implementavam suas políticas de teletrabalho e flexibilização de horários. A quantidade de empresas participantes variou em cada ano ficando em geral próximo de 700 empresas. Uma pesquisa do governo de Tóquio indicou que mais de mil empresas estariam dispostas a participar da empreitada olímpica.
Os resultados observados na lotação das linhas de metrô de Tóquio não foram significativos. Uma ou outra estação, um ou outro trecho mostrou redução perceptível da quantidade de pessoas circulando nos horários de pico. Em uma outra pesquisa do governo de Tóquio, muitas empresas afirmaram não ver benefício em adotar tais medidas pois haveria um impacto na rotina de trabalho das equipes que estão acostumadas a estarem sempre presencialmente disponíveis para as atividades da empresa.
E então a pandemia aconteceu. Tóquio, junto com outras áreas do Japão, entrou em Estado de Emergência e, apesar de lockdowns não serem permitidos pela lei japonesa, os governos locais emitiram solicitações para que as empresas funcionassem em regime de teletrabalho quando possível e que bares, restaurantes, casas noturnas, academias e outros estabelecimentos considerados de alto risco interrompessem as suas atividades. A grande maioria das empresas parece ter atendido a solicitação. Uma das empresas com quem trabalho colocou seus 2 mil funcionários em regime de teletrabalho em apenas 2 dias. À medida que o governo enfatizava sua solicitação, menor era a lotação dos trens e metrôs.
Cheguei a ser a única pessoa num vagão de trem de uma das linhas mais congestionadas de Tóquio no meio da tarde. Nos horários de pico da manhã e da noite, apesar da redução perceptível, muita gente ainda indo e voltando do trabalho, todas usando máscaras. Segundo uma pesquisa recente (25 de maio a 5 de junho) do Governo Japonês entre 10.128 pessoas, 34,6% dos respondentes mudaram para o regime de teletrabalho durante o estado de emergência no Japão. Em Tóquio, esse número chegou a 35,4%.
Agora, quase 3 meses depois, com a suspensão do estado de emergência, começam a aparecer diversas notícias sobre empresas que decidiram continuar, total ou parcialmente, o teletrabalho. Aliás, as notícias citam diversas empresas que resolveram rever completamente a forma como encaravam o escritório. Muitas procurando rever contratos de locação para reduzir o tamanho atual dos escritórios e outras sublocando partes de seus escritórios, atualmente vazios. Algumas empresas, provavelmente percebendo o impacto positivo do teletrabalho no custo operacional, começaram a relocar seus escritórios do (absurdamente) caro centro financeiro de Tóquio para os centros secundários nas áreas mais periféricas da cidade. Se essa mudança é significante, ainda é cedo para dizer, mas como Tóquio funciona segundo tendências, é possível que esse movimento ganhe força nos próximos anos.
Se isso se confirmar, certamente a mobilidade urbana e planejamento urbano serão afetados de forma significativa. Os deslocamentos para o trabalho podem ser alterados fundamentalmente em termos de frequência, horários, modos, duração, custo e até mesmo na sua existência. O próprio planejamento da oferta de oferta de transporte público deve ser afetado, com um achatamento da curva de demanda, reduzindo a demanda nos picos e aumentando a demanda nos entrepicos. Uma boa notícia no sentido da redução do tamanho das frotas, mas talvez uma má notícia no sentido da previsibilidade da receita operacional, principalmente quando for baseada em grande parte na tarifa. Deve haver impacto nos contratos, nas tarifas e principalmente na qualidade dos serviços. Se esse impacto será positivo, ainda é cedo para afirmar. As bases de dados que servem de fundação para o planejamento provavelmente deixarão de ser confiáveis (assumindo o fossem antes de toda essa situação). Novas pesquisas serão essenciais à medida que as restrições sejam suspensas, mas talvez os próprios instrumentos de pesquisa tradicionalmente utilizados já não sejam adequados. A incorporação da aquisição de dados na rotina das cidades torna-se cada vez mais urgente.
No Japão, já existem dois serviços (em um deles eu participei do desenvolvimento), cada um de uma operadora de telefonia, que permitem acesso a informações de mobilidade urbana derivadas dos dados de localização dos usuários de telefones celulares. Entre os principais clientes destes serviços, estão as empresas operadoras de sistemas de transportes e governos locais.
Apesar disso, no que diz respeito ao uso de grandes bases de dados para o planejamento das cidades, ainda se fala muito e se faz pouco. As grandes bases de Big Data, que permitem capturar, quase que em tempo real, as mudanças de comportamento das pessoas e das empresas, ainda são exploradas quase que exclusivamente pelas empresas privadas, ficando o poder público, especialmente o municipal, obsoleto e atrasado.
Com a possível retomada progressiva das atividades, a medida que as restrições decorrentes da pandemia são suspensas e a preocupação das empresas com a perspectiva da ocorrência de novas ondas de infecção, há grandes chances das mudanças no regime de trabalho se consolidarem. Cada país, cada cultura vai reagir a essa mudança de uma forma diferente. E isso pode se desdobrar em melhoria da resiliência das empresas ou em mais vulnerabilidade. Vamos ver.